Tradução
de Donaldson M. Garschagen
Por Kleris: É uma
verdade quase universalmente reconhecida que, uma história antiga como “Orgulho
e Preconceito”, em domínio público, permanecerá sendo lida, relida e remexida
ao longo dos anos.
Não, não
é assim que se inicia a narrativa de Jo, mas posso afirmar que, tal como a Jane
Austen, ela abre a história colocando os pontos direto nos Is, nos revelando sobre qual realidade tratará: a vida das
presenças espectrais que servem à família Bennet. Jo lhes deu nome,
personalidade e história.
Tomo
aqui que vocês já conhecem o enredo em “Orgulho e Preconceito” (OeP). Para que
certos acontecimentos tenham maior valor, a história exige uma carga de
referências sobre o original; porém, em nada impede o entendimento geral. Na
maior parte essas referências funcionam como um guia.
Bom, de
volta à residência da família Bennet, dessa vez passeamos por cômodos que Jane
Austen pouco se deteve. É na cozinha, no sótão, nos estábulos e no terreno da
família que vemos Sarah e Polly, duas órfãs, trabalhando duramente ao lado do
mordomo sr. Hill, e sua esposa sra. Hill, a cozinheira/governanta.
A partir
de um narrador na terceira pessoa, semelhante à Austen, conhecemos os cansativos
serviços diários e as perspectivas de vida desse pequeno grupo, mais
precisamente as de Sarah, jovem criada. Ela é uma moça que guarda opiniões, que
não se contenta com o emprego, sofre de desgaste e tem sonhos de uma vida
melhor. Duas novas mãos serviçais eram do que a
casa precisava.
A
chegada de James Smith, o novo lacaio, em nada muito substancial muda a rotina.
Ele era uma presença, claro, diminuía o trabalho duro das criadas, veio muito
bem a calhar, mas aos olhos desconfiados de Sarah, ele não passava disso. Os
outros serviçais, por outro lado, eram bem agradecidos e acomodados em seus
postos. Polly é uma menina doce e inocente, sr. Hill é um velho bondoso e
trabalhador, e sra. Hill é a “mãezona” que comanda as coisas.
Logo a
casa começa se movimentar, pois Bingley é o novo vizinho. Acho que é
inevitável por essas horas ter o filme de 1995 ou 2005 (para
quem assistiu) passando sob nossas vistas. É enquanto rola o início do romance
da srta. Jane com Bingley que Sarah conhece o lacaio Ptolemy (que prefere
ser chamado de Tol), um homem vivido e com um status melhor por trabalhar para uma família importante. Isso dá alguma
esperança de mudança real de vida a Sarah. Só que uma mudança dessas já havia acontecido
sem ela notar.
Sarah
não podia imaginar que, ao secar as xícaras que ela lavara, ele pretendia
chamar a atenção dela de alguma maneira.
As unhas
dele, ela notou, pareciam luas pálidas – e chamou-lhe a atenção o movimento de
seus músculos no antebraço enquanto ele passava o pano no interior das xícaras
–, mas ele permanecia tão silencioso como uma pedra. Depois ela se lembrou
[...] de Tol [...] e de como ele a notava, de como ele lhe dirigia todas
aquelas atenções [...].
James
trabalhava com deliberada lentidão, enxugando cada xícara e copo até rangerem,
mantendo-se perto dela, apreciando sua expressão de enfado, seu silêncio
obstinado. Aquela pertinácia, aquela carranca o encantavam de uma forma que ele
não entendia claramente. [...].
Ela era
mais dura do que ele imaginava. Não queria nada dele. Ela o afastava de si como
uma mosca.
Ele se
deliciava com isso.
Conforme
a história original foi progredindo, que os dias se faziam de esforços, reconheci
um orgulho e preconceito que não
poderia imaginar. É incrível como as coisas acontecem debaixo do nosso nariz. Nesse
sentido, Jo seguiu a linha do romantismo e realismo de Austen, marcando a
narrativa não com frases de efeito, mas cenas, muitas cenas detalhadas e longas
(como o trecho anterior), para mostrar o ponto a ponto de como as coisas se
davam, como as personagens se comportavam e o que realmente tinham em seus
pensamentos. Isso dá uma graça maior às conveniências e nos faz colecionar um
monte delas.
“O
pacote. O que tem dentro dele?”
“Rosetas
de sapatos”, ela respondeu.
“Rosetas
de sapatos?”
“Rosetas
de sapatos. Rosetas para sapatos.”
“Não
entendi.”
Ela se
impacientou. “Os sapatos de baile têm rosetas, que são presas neles.”
“Para
que se faz isso?”
“Para
que fiquem bonitos.”
Ele
ergueu os olhos para o céu.
“O que
foi?”
“Nada. É
que, se a encarregarem de novo para uma incumbência tola como essa, debaixo de
uma chuva tola como essa”, ele disse, “me procure, me ache, que eu irei no seu
lugar.”
Ela pôs
as mãos aos quadris, os olhos chispando. “E por
que você deve determinar o que eu posso e não posso fazer?”
Ele
ergueu as palmas das mãos. “Eu não quis...”
“E se eu
quiser ir? E se para mim for um prazer ir? E se eu não quiser que você meta o
bedelho onde não é chamado?”
O livro
conta com três partes e um finis. Até
a segunda parte as coisas se movem em função do mundo de “Orgulho e
Preconceito”; é na terceira que vemos a real imaginação de Baker. A maneira
como ela entrelaçou isso à trama de Austen me impressionou bastante, vide as entradas
de capítulo, com trechos reais da obra (semelhante às epígrafes em Jane Austen: A Vampira, de Michael T. Ford).
Houve
uns momentos em que a narrativa se arrastou, mas gosto de pensar que era por
ansiedade de chegar em alguns “finalmentes” (rs). Jo foi malandra de me deixar
com o coração na mão diversas vezes, me emocionou, me fez rir, torcer shippar, e me chocou a ponto de me questionar seriamente sobre alguns
personagens e comportamentos. Para o que Austen nos deu com uma visão
romântica, Baker nos traz uma visão realista e vice-versa.
De todas
as adaptações que já vi sobre OeP, esta certamente me chacoalhou! Já vi
diversos filmes, séries e livros e nenhum até então consigo equiparar. Jo
basicamente estendeu o quadro de vivência de Longbourn, região da casa
“modesta” dos Bennet. Digo isso entre aspas por todos sabermos que a família
não era nada abastada, mas viviam confortavelmente, o que nesse livro, sob a
vista dos criados, a gente entende de outro jeito.
Sarah
fez apenas um leve gesto de assentimento com a cabeça, cerrou os lábios e
voltou a atenção para a mesa, oferecendo o prato de presunto frio: tudo seria
esclarecido no devido tempo, não lhe cabia indagar. Nunca lhe cabia falar, a
não ser quando lhe falavam primeiro. Era melhor ser surda como uma porta para
tais conversas e parecer incapaz de formar uma opinião sobre elas.
Acho que
a capa ilustra bem isso (o trecho). Apesar
de o livro abarcar várias histórias, é em Sarah em que se centra. Gostei
bastante do título também: o original é Longbourn,
e a edição daqui acrescentou “as sombras”, o que concorda em dar mais vida a
esses personagens. Só não concordo talvez
com uma coisa (rs): na contracapa, há uma informação que diz que “Orgulho e Preconceito é só metade da história”.
Arrisco afirmar que não é NEM metade e que foram uns bons 200 anos de espera que
valeram a pena. Assim como guardei Lizzie e Darcy no coração, guardarei Sarah e
James. E Polly, sr. Hill e sra. Hill!
Recomendo
àqueles que já leram (ou conhecem a história) OeP alguma vez, independente de
terem gostado. Ou mesmo se gostam da série Downtown Abbey! Vocês PRECISAM
ver o que Jane não pôde, àquela época, nos contar, e não falo só pelos
criados, mas também um imaginário sobre as Bennet casadas. Sugiro, no
entanto, que mantenham um aplicativo de dicionário perto (rs). No começo tem
umas palavrinhas que podem parar sua leitura, mas com o tempo vocês levam na boa.
Acho que
nem preciso dizer que AMEI, né?
E já
quero saber de outros trabalhos da escritora.
Espero
que também amem. Até a próxima o/