Por Kleris: Estou seriamente me perguntando se muito de
nós leitores sofrem/sofreram do mesmo preconceito ao se depararem com Cecelia
Ahern. Eu, por exemplo, só de ouvir falar de P.S. Eu Te Amo já cogitava que iria chorar horrores (embora ainda não tenha lido) e como alguns sabem, corro de livros assim. Quase literalmente. Aí dar de
cara com um livro chamado “A vez da minha vida” foi fácil pensar em algo como
autoajuda. Não que eu ache terríveis os livros autoajuda, mas somar drama,
impressão ruim e autoajuda, é outra história. É, infelizmente, uma nova
impressão má-concebida.
Pois
então, quando se encontrarem com Cecelia Ahern em mãos, ABORTEM AS CAIXINHAS DE LENÇOS!
A Vida
de Lucy Silchester literalmente começa a chamá-la para um encontro. Liga, manda
recados, manda cartas para a família, chama atenção de tudo que é jeito, até
Lucy topar se encontrar com o moço. Sim, sua Vida é um moço, funcionário de uma
empresa focada em fazer as pessoas darem melhor atenção às suas vidas, cuidar
de seu bem- estar, mental, pessoal, profissional, familiar...
Para ser
chamada assim com tanto afinco, a vida de Lucy devia estar um desastre, não?
Errrr... estava, por assim dizer. Ela não estava de bem com os amigos, não
tinha disposição com o trabalho, evitava a família, ainda pensava no ex,
Blake, tinha um estúdio minúsculo como moradia e isso e tudo mais ela
“levava com a barriga”, não fazendo nada a respeito porque Lucy aceitava sua
realidade. Tinha lá acolá suas raivas, suas decepções e frustrações, mas tomar
atitude, ela não tomava. Até surgir Vida.
— Que emocionante! Você acha que continuar a viver como robô realmente vai me fazer ir embora?
— Eu não acho que tenho vivido como um robô, mas, independentemente do que faço, é muito óbvio que você não está indo embora. Trouxe meu carro para a oficina hoje e Keith, o mecânico, me entregou uma carta sua, que ele já havia aberto e, em termos inequívocos, sugeriu que sexo com ele poderia resolver meu problema. Obrigada por isso!
— Pelo menos estou ajudando você a atingir os homens.— Eu não preciso de ajuda para encontrar homens.— Talvez para mantê-los então.
Vida
é um serzinho implicante... para o bem de Lucy. Pega no pé, discute com ela,
puxa a orelha, joga baixo, todo um processo pra chamar atenção dela e fazê-la
ver que ela poderia ser mais se se permitisse. Mas Vida também se engana se
pensa que conseguirá atenção na base do grito de “apontar os erros”. Assim
que ele vê que Lucy não é má pessoa ou mal intencionada, Vida propõe uma nova
abordagem de ajuda: passar um tempo juntos para que pudesse ver o lado dela
fora dos testemunhos e arquivos que ele tinha – sim, para cada situação ruim,
Vida guardava uma documentação e comentários de amigos e familiares sobre o
comportamento de Lucy.
— O que você está aqui para corrigir?
— Não sei, é uma cirurgia exploratória. Eu examino todas as áreas e vejo qual é o problema.
— Então, você é o endoscópio retal. Ele fez uma careta.— Mais uma vez estamos tendo problemas de metáforas.
Era uma
forma de Lucy se reconectar com sua Vida, pois Vida era um reflexo que
literalmente pedia socorro. Quanto pior fosse a imagem daquele homem, queria
dizer que pior era de fato a vida de Lucy; então quanto mais Lucy trabalhasse
em prol de resolver pendências de si, mais saudável e bom seria Vida. Agora
imagina uma personagem que mente tanto, mas tanto, que até na hora da narração
fica difícil saber se ela fala a verdade ou não. O estado de Vida é péssimo
mesmo!
— O que aconteceu com seu rosto?
Vida olhou para mim irritado e terminou de comer.
— Não é apenas meu rosto, é meu corpo inteiro! – Puxou a gola da sua camiseta nova para baixo e vi que as manchas vermelhas estavam por todo o peito dele.— É brotoeja! — respondeu. — Que merda!(...)— Tudo isso por causa de Blake?— Blake, seu trabalho, seu pai, sua família...
Cecelia trabalha essa história de maneira sensacional. Falo pela maneira escrita, pelo
jeito que leva a história, como ela liga pontos e faz isso com uma simplicidade
admirável. Descobri também um humor incrível, daqueles que me faz querer gritar
por aí COMO ASSIM NINGUÉM ME AVISOU?, porque Cecelia é maravilhosa desse jeito.
Ela tem essa singela forma de se expressar, que se aplica tanto na escrita
quanto na construção da história e isso eu há muito buscava em livros.
— Você sabe dirigir?
Ele enfiou a mão no bolso interno e pegou mais papelada. Ofereceu-me. Nem quis olhar, estava cansada demais para ler.
— Isso me permite dirigir qualquer veículo, desde que esteja de acordo com a assistência e o desenvolvimento de sua vida.— Qualquer veículo?— Qualquer um.— Até motos?— Até motos.— Tratores?— Até tratores.— Quadriciclos?— Até quadriciclos.— E barcos, você pode dirigir barcos?Ele olhou para mim com exaustão, então, desisti.
Mais que
não abusar de situações-drama, desenvolver uma história crível e dar muitas
personalidades para se apegar, pontos que pelo que já vi de resenhas aqui no
blog, da Mary e da Sheila, pontos esses que nos dão um parâmetro de estilo da
autora, captei também um que foi o que mais me impressionou: mesmo se
utilizando do óbvio, Cecelia foge ao lugar comum. Tanto que nem sei que rótulo
literário dar, já que ela se faz num meio-termo de muita coisa.
A trama
é ligeira, bem equilibrada entre o absurdo e o trágico divertido, me fez sentir
ora em episódios de Gilmore Girls (principalmente no quesito sobre a família e aceitação), ora em páginas com a Becky Bloom (enquanto esta fugia do Sr. Smith rs). Além de Vida, personagens como Riley, irmão de Lucy, e Don, "o cara do tapete", eles nos arrancam boas risadas com as invenções de Lucy nos seus bolos de mentiras e verdades. Não dá pra não torcer por Lucy melhorar de vida. Por ser assim uma história ágil, as cenas se dão melhor pelas
conversações, altamente etiquetáveis e colecionáveis! É quando a autora revela
melhor seu humor, nada de frases de efeito.
Notei
apenas uma incoerência inocente na história, nada que incomode muito. A autora
só me deixou com uma pulguinha atrás da orelha sobre como funcionava a Agência
Vida e como é possível uma pessoa ser a personificação, ou se conectar
fielmente ao estado de vida de outra pessoa. É algo a se pensar.
Tal como
o jeitinho da autora, a edição é simples, com uma capa que
conserva bem esse encontro com a vida. Gostei mais da capa da Novo Conceito do que da original. Do título eu só dispensaria o
complemento, pois “A Vez da Minha Vida” já reserva uma boa surpresa. É uma
leitura leve para qualquer hora e altamente recomendada!
Espero
que também pulem o preconceito com a Ahern e se joguem nessa história.