*Por Mary*: Bem, quando abri o livro e me inteirei da sinopse,
logo pensei "o livro é curtinho, mas vai me dar um trabalho dos
diabos" e não me enganei.
O tema é bastante polêmico, o que requer muito cuidado,
uma vez que tal discussão envolve diversos pontos de vista e vieses (esse tema
comumente é levantado na faculdade de Direito). Quem cursa Direito aí sabe que
não é fácil (e eu diria até impossível) chegar a um consenso quando se envolve
religião, vida e família em um mesmo conflito.
Sou advogada e tenho uma verdadeira inclinação para o
Direito de Família, que, inclusive, foi a área de estudo da minha monografia.
Justamente por isso, percebi que esta resenha requeria outro cuidado: não
enchê-la de juridicismos para evitar
que se torne um texto maçante. Ninguém aqui está interessado em um artigo
científico sobre direito.
Portanto, prometo que farei o possível para me ater ao
máximo à parte literária da obra.
Não quero ninguém cochilando!
Fiona Maye é uma renomada juíza da Vara de Família do
Tribunal Superior britânico, reconhecida no meio profissional por sua
imparcialidade e competência; é respeitada por seus colegas e admirada em todo
o meio jurídico. O sucesso profissional, todavia, esconde os problemas
enfrentados na vida privada. Fiona não consegue se desvincular dos casos que
julga, o que prejudica sua vida pessoal. Seu marido, Jack, surge com uma
proposta indecente, ao mesmo tempo em que ela precisa decidir a vida de um
garoto de 17 anos, Testemunha de Jeová, que se nega a receber uma transfusão de
sangue que o salvaria da leucemia. Enquanto vida pessoal e profissional convergem,
Fiona precisa repensar sua forma de lidar com as consequências das decisões que
toma em relação às vidas de terceiros.
Tive uma professora na faculdade que costumava dizer
que, se você passa a levar os casos profissionais para casa, isso vai acabar
com a sua vida pessoal, porque você passa a viver aquilo que não deveria
interferir na sua vida. Fiona é a prova do conselho da minha professora.
Não obstante ser uma boa profissional, juíza impecável
e o mais imparcial possível, Fiona se deixa envolver demais pelos casos que
julga. A despeito das sentenças que profere, à noite, remói cuidadosamente cada
um de seus casos, têm pesadelos e isso afeta seu casamento com Jack, que está
cada vez mais insatisfeito. Outro fato que, acredito eu, influencia bastante no
caos que a vida da juíza se transforma é o seu caráter extremamente
introspectivo. Se eu pudesse bater um papo com a meritíssima, respeitosamente
sugeriria que ela procurasse um psicólogo. Urgentemente.
“E por fim ela desandou a chorar, de pé junto à lareira, os braços
caindo inermes ao longo do corpo, enquanto Jack observava, chocado por ver sua
mulher, sempre tão contida, num paroxismo de dor. (...) Fiona não conseguia
falar, o choro não iria parar e ela não podia mais permitir que fosse vista
naquele estado. Abaixou-se para pegar os sapatos e, só de meia, atravessou
correndo a sala e o corredor. Quanto mais se afastava dele, mais alto chorava.
Entrou no quarto, bateu a porta e, sem acender a luz, se atirou na cama,
enfiando o rosto num travesseiro.”
Conforme o próprio texto menciona, Fiona é sempre
muito controlada, muito contida, a ponto de não se abrir nem mesmo para o
próprio marido, com quem é casada há longos trinta anos. Talvez a crise no
casamento seja apenas uma bola de problemas que ela mesma permitiu transpor-se
entre ambos. Em toda sua vida, a juíza seguiu o caminho da retidão, foi uma boa
filha, profissional, esposa... mas deixou sempre sua vida pessoal de lado em
detrimento da profissão (e eu não vou entrar nesses termos).
Em meio a esta crise pessoal, surge Adam Henry, um
rapaz de dezessete anos, cheio de vida e talento artístico, que se nega
fundamentadamente a receber uma transfusão de sangue, por conta da religião que
segue – Testemunha de Jeová. Nem mesmo Fiona imagina no quanto sua decisão irá
interferir na vida do rapaz, surgindo um tipo de paixão platônica* que irá
determinar o futuro do garoto.
A trama construída por Ian McEwan, sem dúvida, é
indiscutivelmente bem escrita, muito bem fundamentada e com as ideias bastante
amarradas. O autor, inclusive, em seus agradecimentos, menciona alguns
magistrados amigos seus e casos que o inspiraram para escrever o livro.
Formalmente falando, A Balada de Adam Henry é bem
curtinho (apenas cinco capítulos distribuídos em 193 páginas), mas
materialmente denso. A leitura não é fácil, o tema é difícil e a narrativa, por
vezes, maçante.
Calma, que eu vou explicar. É muita informação, né?
Bem, a leitura não é fácil, porque Ian McEwan adota
uma forma de narrativa chamada indireto livre. Isto é, a história inteira quase
não possui diálogos. Quando um personagem fala, é o próprio narrador – em
terceira pessoa, partindo da perspectiva de Fiona – quem descreve o que foi
dito.
“Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía
uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava
da inteligência dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua
curiosidade e paixão pela leitura (...).”
“Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a
precocidade e maturidade dele. (...) Grieve fez uma pausa, como se necessitasse
refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a
sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível que o Sr. Carter detestasse a
ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção
profissional que se esperaria de uma figura tão eminente.”
Os dois trechos acima são do julgamento em que Fiona
decide o futuro de Adam Henry. Durante a maior parte da argumentação, o autor
descreveu as falas dos personagens, em vez de transcrevê-las. Isso pode se
tornar um pouco cansativo, dependendo do leitor. Eu, particularmente, achei
cansativo.
O tema ser particularmente delicado se autojustifica.
Porém, digo que o tema é difícil no sentido de requerer certo conhecimento
prévio acerca de algumas predisposições religiosas. Ao passo que o autor
conseguiu ser bem claro – e eu diria até didático – sobre os motivos dos
seguidores religiosos Testemunhas de Jeová, Ian McEwan conseguiu expor
justificadamente as razões às quais fundamentam suas convicções. Confesso que,
apesar de saber que os Testemunhas de Jeová não aceitam transfusões de sangue
por acreditarem se tratar de uma forma de impureza, não sabia qual a explicação
para isso.
A narrativa se torna maçante por conta da forma
utilizada pelo autor de construir o texto. Quero dizer, são poucos diálogos,
poucas ações, parágrafos muito longos... eu até mesmo incluiria a
característica da protagonista de remoer demais os fatos, mas julgo que esta é
uma característica própria da personagem principal. Se não fosse isso,
provavelmente não haveria nem conflito a se explorar.
Além disso, talvez pela trama fechada, não me senti
parte da história. Sabe aquela sensação de estar dentro da obra e vivenciar
aquilo tudo? Não senti. Contudo, acredito que isso também tenha sido meio
elaborado pelo autor. Isto é, a protagonista é tão fechada, tão introspecta,
que ela nem mesmo permite a aproximação do leitor. É como se o leitor fosse um
dos amigos que Fiona não permite se aproximar o suficiente para conhecê-la,
sentir o que ela sente realmente, vivenciar os seus fantasmas e compreender o
seu sofrimento. Mesmo que não objetivamente, creio que Ian McEwan intencionou o
tempo todo esse afastamento.
Não conheço as outras obras do autor, então não sou
capaz de fazer aqui uma comparação. Também não posso dizer que compreendo seu
estilo de escrita, porque, como disse, não tenho como comparar. Todavia, Ian
McEwan me passou uma boa impressão. Ele tem a escrita bem fundamentada de quem
sabe perfeitamente do que está falando, a seriedade de quem aborda temas
polêmicos sem ofender diretamente os “atingidos” e, sobretudo, uma capacidade
impressionante parar criar uma trama psicológica que envolve uma gama variada
de temas que convergem na vida da protagonista de forma incontrolável.
Em A Balada de Adam Henry, você encontrará uma mulher
que deixou sua vida pessoal de lado em detrimento da profissão amada, que
abdicou da maternidade pelo sucesso profissional e, por diversas vezes, se
anulou em função de um objetivo almejado. Quer tema mais atual? Isso tudo,
somado a um tipo de crise de meia idade, no casamento de longos anos, o
envolvimento indesejado com um rapaz que deveria ser apenas outro caso
profissional, a religião desse mesmo rapaz, a preocupação com sua reputação e
uma atração inexplicável que mescla a maternidade reprimida e o desejo sexual.
“Quem sabe quanto tempo temos. Não muitos anos. Ou voltamos a viver
outra vez, a realmente viver, ou entregamos os pontos e aceitamos que vai ser
uma droga daqui até o fim.”
*Amor Platônico é um tipo de amor fantasioso ou
idealizado em que não há contato real entre os amantes. Quero dizer, não há uma
concretização na relação física factual. É como um amor impossível,
fundamentado na teoria de Platão, que defendia o amor como um sentimento essencialmente
puro e desprovido de paixões.