segunda-feira, 27 de junho de 2016

Resenha: “O Pescoço da Girafa” (Judith Schalansky)

Por Kleris: Uma das coisas mais incríveis que a literatura pode nos proporcionar é nos colocar dentro da cabeça de outra pessoa, enxergar o mundo através de sua visão e nos permitir observar como suas engrenagens funcionam. Em O pescoço da Girafa nós temos justamente isso. Através do recurso de fluxo de pensamento, adentramos a mente de uma professora de biologia que possui uma compreensão muito particular da vida ao redor: Inge Lohmark crê piamente nos princípios fundamentais da natureza – melhor dizendo, na seleção natural. 
— Vejam, ninguém, nenhum animal, nem o ser humano, pode existir sozinho. Entre os seres, prevalece a competição. Às vezes pode haver também alguma cooperação, mas isso dificilmente acontece. As principais formas de coexistência são a competição e o relacionamento entre predador e presa.

Tradução de Petê Rissati
Inge é uma senhora impassível. Ao termos acesso direto aos seus pensamentos, acompanhamos seu dia a dia, seu trabalho, vida pessoal e observações. Essa narração é tão detalhista para nos ilustrar o que Inge está vendo, passando, considerando, que vez ou outra você pode se perder. Mas essa é a natureza do pensamento, né, nem a gente consegue acompanhar aos nossos às vezes. E os de Inge, em seu papel extremista e formal, são tão ácidos que até chegam a ser engraçados – só que de um modo bem trágico. 
— Por exemplo, existem dois milhões de espécies no mundo. Se as condições do meio ambiente mudam, elas correm risco.
Desinteresse absoluto.
— Vocês saberiam dizer algumas espécies que já foram extintas?
Um punhado de braços erguidos.
— Digo, tirando os dinossauros.
Na hora, os braços abaixaram. Essas pestes não conseguem diferenciar um tordo de um estorninho, mas enumeram a taxonomia de grandes répteis extintos. Desenham de cabeça um braquiossauro. Entusiasmo prematuro pelo mórbido.

O pescoço da Girafa é, nesse sentido, um livro muito intrigante e instigante. Próprio do estilo, não há história, mas sim um recorte de percepção. É nessa pouca ação que a autora quer nos mostrar sentimentos de uma maneira mais nua e crua. Ali, em sua própria cadência, eles se libertam. As excessivas descrições e concepções, por sua vez, são pistas para o leitor sacar o que há de natureza e humanidade na personagem. 
O assunto netos não parecia ir bem. Um salto no vazio. Um beco sem saída. Claudia já estava com trinta e cinco. Mas os avestruzes também não voltavam a olhar seus filhotes. No reino animal, ninguém passava aos domingos para um cafezinho. Não se esperava gratidão e também não havia direito a devolução. Sem proximidade. A distribuição dos cromossomos pela meiose acontecia por acaso. Nunca se sabia o que surgiria dali.

Ao nos colocar nessa posição, Judith nos prende a uma persona absurda. Orgulhosa, exigente, distante. Se num primeiro momento a nossa aproximação nos permite rir das loucuras que são as concepções de Inge, noutro, quando passamos a entender mais das suas engrenagens, esse riso passa a ser mais contido... até parar de vez. Ficamos incessantemente em busca de mais e mais traços de humanidade nela, como que para provar que existe, em algum lugar, mesmo nas pessoas mais amargas.

Inge na verdade é a porta para compreendermos a seleção natural em prática; aliás, em seu autoritarismo de professora, traz à tona o sistema de educação ultrapassado que ela, como outros, insiste em manter. Não apenas somos socados no estômago pela inacessibilidade emocional da personagem, mas também pelo próprio caminhar do ambiente em que ela vive; ela não se conecta a pessoas – e por não se conectar, muita coisa passa atropelado por suas vistas (como família e responsabilidade social) sem qualquer intervenção.  

A leitura de O pescoço da Girafa é interessante pela empatia – à Inge e às pessoas ao seu redor – mas também pela crítica social e escolar. Não é porque o homem, biologicamente, é um animal, que ele se comportará como tal; na vida em sociedade as leis são outras. Diferentemente do mundo animalesco, temos a vantagem do pensamento, da estima e do respeito.
Os vencedores eram os mais capazes. Quem vencia, vencia por direito. Na natureza não havia injustiça. Nenhuma injustiça. Tudo era natureza. Na natureza das coisas. Quem sobrevive, venceu. Não, não mesmo. Quem sobrevive, sobrevive. Ponto. O que hoje era exceção, amanhã podia ser regra. [...] Era um planeta dinâmico. Podia-se almejar a perfeição, mas ela não previsível. Não havia avanço. Avanço era um erro de lógica. Tudo era imperfeito, mas não desesperançado. [...] Tudo era temporário. [...] Espécies complexas nunca sobreviveram muito tempo.

Judith criou um recorte social com uma delicadeza incrível. Nunca fui muito fã de fluxo de consciência/pensamento, mas neste livro em particular a leitura fluiu em um ritmo bom. Sempre curti a ideologia da seleção natural e do pescoço da girafa, embora nunca muito dada aos aspectos biológicos em si. A sacada do livro – corroborada pela capa linda – puxa das entrelinhas e da nossa sensibilidade para compreender a interação social ali desenhada. Vale a nota para observar os cabeços das páginas que trazem, assim como as imagens surpresas nas páginas, mais pistas para a leitura.

Recomendo, porém, com ressalvas, pelo estilo incomum. Apesar de uma leitura rápida, a maneira como os elementos literários aqui se encaixam pode ser um desafio para alguns leitores, pois há muita sugestão no ar, como um filme silencioso. Indico a quem curte o lance do fluxo de pensamento, ler comportamentos, críticas sensíveis, altas descrições, o embate ciência biológica vs ciências sociais. É por certo um livro que fica na cabeça para ser digerido por semanas. 
Como devia ser bom seguir um instinto. Sem sentido ou razão.

Percebe-se que O pescoço da girafa foi um livro difícil de parir, imagino que tanto pra escrever quanto pra trabalhar nele para publicação e tradução, mas é daqueles que ao trabalho final a gente concorda que valeu a pena. Aliás, ele faz parte de uma leva de livros alemães que estão chegando ao Brasil por conta da parceria de tradução do Goethe Institute. Espero em breve ler mais livros da autora – apesar de ser seu terceiro, é o livro de estreia nas terras tupiniquins.  

E não posso deixar de dizer que dou RT no texto da contracapa!

Até a próxima! 
— [...] Muitos animais se esforçam para alcançar seu objetivo, que está bem diante do seu focinho. Todo dia treinarão e se acostumarão a esticar-se na direção das folhas. E esse costume se tornará aos poucos, mas, com certeza, um modo de vida. E, em algum momento, compensará. Para os filhos e os filhos dos filhos. O pescoço, ele se alongará. [...] A vida é estirar-se e alongar-se. Para cada um de nós. Às vezes, o objetivo parece estar a um passo. Mas mesmo assim precisamos nos esforçar para alcançá-lo de fato. Em cada um de nós existe o impulso para o ponto mais alto, para se desenvolver até o ponto mais alto. [...] As influências externas têm consequências. Tudo influencia o caráter, as tendências, as atividades e a estrutura corporal, tudo. Tudo é bom para alguma coisa. Tudo tem um sentido. [...] Claro que nosso entorno nos influencia. Adaptação é tudo. E o costume faz o homem. E quando o entorno muda, mudam também os organismos que nele vivem. Não existem organismos sem meio ambiente. 


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Ana Liberato