*Por Mary*: É, minha gente, em tempos de manifestações políticas
com pessoas ostentando cartazes pedindo pela volta da ditadura, sinto vontade
de esfregar esse livro na cara de cada uma delas.
A tortura é a ferramenta de um poder instável, autoritário, que precisa de violência limítrofe para se firmar, e uma aliança sádica entre facínoras, estadistas psicopatas, lideranças de regimes que se mantêm pelo terror e seus comandados. Não é ação de um grupo isolado. A tortura é patrocinada pelo Estado. A tortura é um regime, um Estado. Não é o agente fulano, o oficial sicrano, quem perde a mão. É a instituição e sua rede de comando hierárquica que torturam. A nação que patrocina. O poder, emanado pelo povo ou não, suja as mãos.
Porém como este blog não é
político, mas sim literário, vamos conversar sobre um livro maravilhoso? Vamoooooos!
Em Ainda Estou Aqui, com uma narrativa descontínua, sem
preocupações com a ordem cronológica dos fatos, Marcelo Rubens Paiva descreve muito mais do que a vida de sua mãe
ou a prisão e assassinato do seu pai, ele contextualiza um momento histórico
importantíssimo na vida política do país. Mais ainda, o autor aborda um recorte
histórico que deve ser lembrado, estudado e analisado a fundo, a fim de que um
golpe semelhante não volte a se repetir.
Sabe quando você vai ver um filme? De início, há apenas uma tela negra
que se abre a uma imagem ampla – a imagem de uma cidade aparece à sua frente,
talvez? – que vai se fechando em um ponto fixo, afunilando até encontrar um
bairro, um telhado e, finalmente, uma pessoa. Esse, na maioria das vezes, será
o nosso protagonista. É dessa maneira que você se sente no primeiro capítulo
deste livro do escritor, dramaturgo e jornalista Marcelo Rubens Paiva. A partir
de uma reflexão pontual acerca da memória, o leitor é introduzido ao mundo de
uma pessoa com alzheimer e, então, à vida de sua mãe, Eunice, portadora da
doença.
A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida. Uma memória não se acumula sobre outra, mas ao lado. A memória recente não é resgatada antes da milésima. Elas se embaralham. Minha mãe, com Alzheimer, não se lembra do que comeu no café da manhã. Minha mãe, com Alzheimer, vê meu filho de um ano, que é a minha cara, e o reconhece. Não acha que sou eu, mas o chama de filhinho, de meu filhinho.
Que pessoa fascinante! Eunice Paiva foi esposa do deputado Rubens
Paiva, morto pela Ditadura. Viúva, com cinco filhos, em busca do paradeiro do
marido – não obtendo respostas das autoridades, mesmo após o fim da ditadura
militar – se formou em Direito, advogou pelos direitos difusos e coletivos – sobretudo indígenas –, circulou pelas altas rodas sociopolíticas e
se tornou um grande nome no meio jurídico brasileiro.
Mesmo com todas as dificuldades, as perdas e o silêncio, Eunice Paiva
deu a volta por cima, demonstrou uma força impressionante. Nunca chorou diante
das câmeras. Em vez disso, lutou. E o reconhecimento da morte de seu marido –
considerado “desaparecido” pelos militares – só chegou em 1995. Isso mesmo, somente vinte e cinco anos depois de sua morte. Apenas posso imaginar a dor
destas famílias que perderam seus entes queridos para um governo totalitário e
pungente.
Meu pai, um dos homens mais simpáticos e risonhos que Callado conheceu, morria por decreto, graças à Lei dos Desaparecidos, vinte e cinco anos depois de ter morrido por tortura.
Eu poderia dizer que este livro é uma biografia de Eunice Paiva, mãe
do escritor e brilhante advogada vítima da ditadura militar que assolou o
Brasil nos anos 60 – e perdurou por aí até boa parte da década de 80. Contudo,
julgo que não seria inteiramente honesta se assim o fizesse.
É muito mais que isso, pois, com o fim de contar a história de sua
mãe, Marcelo Rubens Paiva entranha em sua própria história, na de seu pai e,
sobretudo, no lapso histórico que tanto marcou o destino da família Paiva;
traçando uma profunda reflexão sobre memória, força e resiliência.
A tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se toda a família a uma tortura psicológica eterna. Fazemos cara de fortes, dizemos que a vida continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de injustiça.
Diante da realidade sociopolítica brasileira, pode-se dizer que
Marcelo Rubens Paiva nunca esteve tão atual.
Com uma narrativa bastante envolvente, Ainda estou aqui é muito mais do que um mero livro literário
escrito com o objetivo único de entreter o leitor, pois é extremamente rico
também do ponto de vista informativo. Para quem se interessa por História,
então, nem se fala. Não deixe de conferir esta obra prima da Literatura
Brasileira.
Você vê um quadro hoje. Vê o quadro de novo daqui a dez anos, o revê daqui a vinte, trinta, quarenta... É o mesmo quadro, com a mesma moldura, na mesma parede do mesmo museu, com a mesma luz, é você, mas cada vez será visto de outra forma. Cada vez ele nos conta uma história. O quadro não mudou. Já nós...
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