sexta-feira, 31 de março de 2017

Projeto Escrevendo Sem Medo (Março) - Um pássaro engaiolado ganhando a liberdade


O Projeto Escrevendo Sem Medo é uma proposta do blog Historiar para exercitar a escrita, abrir os horizontes e escrever sem medo. Acompanhe textos dos participantes do Projeto aqui.   

Tema de Março: Um pássaro engaiolado ganhando a liberdade
Como é se sentir assim?


- Vul, kuelsa, vul!*
Hoje, pelo jeito, era um daqueles dias. Um em que aquela senhora passava para me visitar e fazer uma nova tentativa: me empurrar até o fim da superfície onde eu estava empoleirada, para me ajudar a impulsionar um voo. Não era o melhor incentivo, pelo menos não da maneira que era induzido, pois, pelo contrário, só me alarmava o coração, minhas asas grudavam cada vez mais ao lado do corpo pequenino, e minhas patas saíam arranhando o tabuado. Ah, sim, eu também protestava, aos gritos, como se alguém pudesse entender minhas exatas palavras. Não! Não! Me deixa em paz! Não, de novo não! Para os humanos, não devia passar de algum grunhir esquisito. E desesperado.
Como agora.
Eu também tampouco entendia o que elas diziam, mas sempre soltava o ar quando a moça bondosa vinha me resgatar daqueles ataques. Pra falar a verdade, soltava até ar demais, numa respiração intensa e acelerada, que sempre demorava a se regular. Enquanto tudo era um borrão, trotava de um jeito tortuoso em minhas patas para onde fosse mais seguro. O cantinho de meu lar. Lá eu tentava me convencer de que estava tudo bem. Mas sempre ficava uma pontinha de terror por saber que aquilo ainda voltaria acontecer, de novo e de novo.
O rosto da moça surgiu na entrada de minha casinha, me examinando como sempre. Discutiu algo mais com a senhora e colocou um pedaço de alimento na entrada. Nem por comida valia a pena passar por aquilo.

***

Estava empoleirada no ombro da moça enquanto ela passeava por aquele mundo verde e marrom. Árvores altas, raízes grandes, muitas folhas e terra. Cheiros inebriantes. Vento suave. Do jeito que eu gostava. Ouvia longe outros pássaros muito parecidos comigo, geralmente voando de algum lugar para outro. Cantavam também. Alguns versos eram compreensíveis, outros nem tanto. Já ouvira um pouco de tudo, sem, no entanto, me deter a eles de verdade. Mas as melodias ficavam. Às vezes eu mesma assobiava, para melhorar meu dia.
Gostaria de estar mais perto daqueles bandos, da minha espécie, ouvir, cantar junto. Mas, na minha atual situação, eu não via como. Na minha limitada situação, eu não poderia.
E isso era uma droga.

***

Um barulho ínfimo, mas constante, me fez despertar. Algo arranhava no teto de meu lar. Coloquei a cabeça para fora para tentar ver o que era, ainda amanhecia o dia. Estava muito cedo para ser um humano. Dei passos calculados, pelo tabuado, pra todo caso. Avistei uma ponta de uma asa e ouvi uns grunhidos baixos, grunhidos de quem muito se esforçava em algo. Me afastei mais um pouco para ver melhor. Havia uma criaturinha se debatendo ao alto de minha casa. Era um pouco menor do que eu e parecia presa no patamar de cima do tabuado.
Com cuidado, me enganchei em pontos ali já conhecidos para subir e ir ajudar. O animalzinho percebeu minha presença e se debateu mais ainda. Havia uma gosma branca presa em sua asa e também presa à tábua. Esticava. E não saía da asa.
- Não se aproxime!
Era uma pequena fêmea, tal qual eu, embora bem diferente de mim.
- Argh!
- Deixe-me ajudar.
- Não, eu consigo!
Ela se debateu mais uma vez, com mais força e a gosma só esticou. Eu já tinha visto essa gosma em outros lugares e já tinha pisado também. Pra sair não foi fácil, tive que cortar com o bico. Parte da gosma ainda ficou na minha pata por semanas. Era nojento, mas era o jeito.
Sem atender aos protestos daquela pequena, avancei na gosma para cortar aquele estica-estica. Não foi fácil, tive que colocar um pouco de força, puxar um pouco, até que por fim a gosma se rompeu. Um pouco dela ficou em meu bico e tratei de esfregar a pata lá para tirar tais resquícios. Estava concentrada em tirar aquilo de mim quando ouvi:
- Como você fez isso?
- Isso o quê?
- Como... você...? Como fez isso?
Embasbacada e solta, ela me olhava e olhava pra gosma do outro lado.
- Já tive um problema parecido. Não adianta puxar, tem que...
Antes que eu dissesse algo mais, ela bateu as asas a mil, mesmo com aquele pouco de gosma nas penas, e deu piruetas. Riu alto até.
- Pensei que não iria me soltar mais. Obrigada, obrigada, obrigada!
Era engraçada sua comemoração. Fiquei feliz por ela.
- Já sei como retribuir. Vem comigo!
Se num segundo ela estava agitada ali em cima de minha casa, noutro saíra disparada. Não pude reagir senão continuar no mesmo lugar.
- O que você está esperando? Vem comigo!
Olhei para onde ela estava, olhei ao redor, olhei para onde ela iria. Olhei para baixo também.
- Eu... Eu não posso ir.
- Por que não?
- Eu... Só não posso.
E desci pelos ganchinhos de volta para minha casa.

***

Na manhã seguinte, ainda sem propriamente ter amanhecido, acordei com novos arranhões sobre o teto. Será que...? De novo?
Fiz meu caminho e encontrei a pequena ali, arranhando o teto sem estar presa. Assim que me viu, ela voou para o tabuado que ficava um pouco acima dali. De novo, me enganchei em pontos estratégicos e a alcancei. Ela trazia algo ao bico. Pôs na superfície e disse:
- Trouxe pra você. É bom. Acho que você vai gostar.
Avaliei. Parecia uma frutinha. Tinha cheiro de fruta. Não a conhecia, mas parecia boa. Abocanhei e provei. Era diferente das que a humana me trazia, não tinha experimentado nada parecido até então.
- Posso conseguir mais se quiser. Ou você pode vir comigo. Te mostro onde fica.
- Eu não posso sair.
- Por que não?
- Não posso.
Ia virar e tomar rumo de casa de novo, quando ela disse:
- Tudo bem, eu pego pra você.
E saiu mais uma vez em disparada.

***

Um pouco mais tarde naquele dia, eu me alimentava quando senti um cheiro esquisito. Geralmente sentia quando certa humana aparecia para me perturbar. Levantei a cabeça e não a vi.
Dessa vez ela não me pegaria, estava na entrada de minha casinha, ela não ousari...
Antes que completasse o pensamento, algo me interpelou pelo pescoço e fui puxada pelo ar. Meu coração foi pra boca em um segundo e me debati. Não conseguia ver nada. Não conseguia respirar. E então fui jogada ao tabuado de volta aos gritos de uma humana. Aquela senhora humana.
Tonta do atentado, não via bem o que estava acontecendo. A humana também se debatia. Havia algo a cutucando ao ar, girando, tão rápido, que a coloca pra correr. E então a pequena passarinha se materializa a minha frente, as asas batendo a mil.
- Você está bem? A humana te machucou?
Mas não estava em condições de falar de tão paralisada que me sentia.
- Como você consegue viver aqui? Temos que sair daqui.
Só engoli a seco e tentei me levantar.
- Você me ouviu? Ela pode voltar aqui.
- Eu sei. Mas eu não posso sair daqui.
- Por que n...? O que te prende aqui?
- Eu.
E saí mancando de volta para minha casa.

***

À meia luz ao céu, luz forte e clareadora, ouvi velhos arranhões no meu teto. Após o incidente de mais cedo, a humana bondosa parece ter tido conhecimento do ocorrido, pois parecia preocupada comigo. Falou coisas que não compreendi, claro, mas seu tom doído dava sinais de que era algo assim. Ela fez um pouco mais de carinho, me deu mais frutas e passou mais tempo comigo do que outras vezes. Com seu cuidado e algumas melodias, fui me acalmando. Mas não estava tão bem assim para sair de meu ninho.
Os arranhões continuaram por mais uns minutos. De repente, cessaram. As coisas ficaram quietas por um segundo ou dois. No meu canto, me encolhi mais. Desgastada pelo que acontecera, triste por... tudo.
- Oi!
A pequena passarinha se materializou na minha porta me dando um leve susto.
- O-oi.
- Trouxe mais frutinhas. Vem aqui fora pra eu te mostrar.
- Eu não tô muito afim agora. Mas obrigada.
- Tem certeza?
Ela parecia ansiosa, mas... Assenti.
- Tudo bem.
Pensei que ela iria embora depois disso. Pelo contrário, andou até próximo de mim e se sentou sobre as patas. Ficamos em silêncio por um tempo. Então ela começou a cantarolar baixo, assobiando algo. Era bonito o som. Reconfortante.
Dormi tranquila.

***

Jadé aparecera mais uma vez ao anoitecer. Mais cedo ela viera trazer mais frutinhas e me disse seu nome. Repetiu o meu até aprender. Líris. Quando conseguiu, se despediu. E então retornara. Sem arranhar meu teto, ela foi logo entrando na minha casinha.
- Trouxe mais uma leva de frutinhas.
- Por que você traz?
- Porque sim.
Ela foi tão direta e enfática, que pisquei aturdida.
- Porque sim?!
Sem jeito, seus olhinhos saltaram.
- Você não quer... companhia?
- Bem, não é isso. Só não entendo porque você sempre volta.
- Você é minha amiga, ué.
- Sou?!
- É. Anda, trouxe o bastante para nós duas.
E saiu porta afora, afoita.
Dessa vez a segui.

***

- Como é lá no alto?
- É incrív... Você nunca foi?
Jadé me observou por um instante, curiosa e espantada ao mesmo tempo.
- Faz um tempo que não. Já não lembro bem.
Agora ela aparecia com mais frequência. Às vezes conversávamos, às vezes ela cantava, às vezes só ficava ali. Também dividia minhas frutas com ela.
Jadé ficou em silêncio por um momento. Parecia titubear algo. Então disse:
- Eu já fui presa por humanos.
Apenas levantei o olhar pra ela. Pequena daquele jeito e já com muitas vivências.
- Eles também me alimentavam e me davam água. Mas não me davam liberdade.
Liberdade. Senti aquela pontadinha do que ela queria dizer. Eu tinha aquela liberdade. E ao mesmo tempo não a tinha de verdade.
- Sinto muito.
- Daí um dia vi uma saída e... Nem olhei pra trás. Mas ainda sonho com aquelas barras.
Para aliviar o clima pesaroso que ficara por ela mencionar barras, perguntei:
- Como foi sair?
- Foi assustador, mas... Bom. Era o que eu queria há muito tempo, mas exige muito da gente. O gosto da liberdade é um esquisito bom. Gosto de conquista.
Gosto de conquista.
Aquilo ficou em minha mente.

***

Um dia estávamos empoleiradas no alto de minha casinha. Eu ainda limpava meu bico da última frutinha quando Jadé virou pra mim e disse simplesmente:
- Você não voa.
Levantei a cabeça, mas não olhei para o seu lado. Ao meu silêncio, ela continuou.
- É que nunca te vi voar. Você sempre tá se apoiando em algo pra subir ou descer. E acho que não está machucada.
Ainda constrangida, não respondi. Nesse momento ela se aproximou, colocou a asa às minhas costas e disse:
- Eu só queria dizer que tá tudo bem.
Mal engolindo a seco, perguntei:
- Tá?!
- Tá.
Esperei que ela fizesse mais perguntas. Felizmente, elas não vieram.

***

Era noite e estava mais escuro que de outras vezes. Ouvi uns movimentos bruscos, algo se debatia, arrastava, não sei. Tentei enxergar além daquele manto noturno. Daí ouvi uns resmungos, uns gemidos de quem lutava sem sair do lugar. Era Jadé ali no canto, tendo algum sonho ruim.
Ela vinha cada vez mais ficando por ali. A humana bondosa deixou ela ficar. Na verdade, adorou que ficara também. Trazia mais frutas, deixava mais água, sorria para nossa amizade. Era bom ter alguém ali. E não falo só por defesa – até porque a senhora humana nunca mais apareceu. Era... a companhia.
Já estava a meio passo de ajudar Jadé quando ela despertou num átimo e gritou:
- Barras!
E saiu voando em desespero.
Fui até a porta de casa para ver onde iria. Ela rodopiou por uns instantes, nervosa, agoniada, se debateu em alguns cantos dali da árvore, até que finalmente pousou no tabuado. Chorava baixinho.
- Tá tudo bem.
- Eu vi... As barras... Elas... Eles... Eu não...!
- Tá tudo bem. Vai passar.
E fiquei ali com ela até que de fato aquele susto passara.

***

Um dia Jadé estava brincando com as patas na borda de um galho dali perto até que pisou de mau jeito e escorregou. Não foi nada demais, ela riu até. Bateu as asinhas, pôs-se a voo, rodopiou e fez que ia cair, mas não caiu. Ria pela travessura.
Depois de tantas conversas, por alguma razão, resolvi falar:
- Não sei por que eu não voo. Só sei que não voo. Não consigo mais.
Agitada, porém pausando ali perto, ela perguntou.
- Mas você já voou?
- Já. Não tão alto, acho. Não sei dizer.
- E você quer? Voar?
- Não sei se posso.
- Mas você quer?
- Não sei.
E foi tudo o que pude falar naquele momento.

***

- Daí o Lico foi até a última folha, pra pegar a semente, mas a chuva era de vento, forte, e... era tão bobo ele querer provar aquilo. Sumiu na madrugada. Não o vi até de manhã, quando voltou com a semente pra gente.
Jadé contava uma de suas histórias. Geralmente travessuras. Lico era um passarinho que encontrara na vida e morava num cantinho de árvore perto dali – perto pra ela, longe pra mim. Acho que já ouvira um de seus cantos. Como Jadé dizia, ele era muito desritmado.
Pensativa sobre o contava, ela acrescenta:
- Apesar dos apesares, acho que entendo o que ele quis fazer.
- Tipo o quê?
- Encarar o perigo e ir com toda a força, sabe? Sem olhar pra trás.
Gosto de liberdade.

***

- Líris!
Eu tinha capotado no tabuado após uma pequena queda. O gancho que eu tinha me apoiado estava desregular e, eu não sei, acho que tropecei. Não foi nada demais, porém, meu coração tava ali, a mil.
- Você tá legal?
- Tô. Foi só...
- Você podia ter voad... ! Você...! É que...
Embaralhada no que ela mesma dizia, eu apenas sentei sobre as patas e esperei passar. Ao ver que eu não diria nada mais sobre aquilo, ela suspirou, ainda ao ar.
- Ah, Líris.
- Você sabe que não voo.
- Tudo bem.
Às vezes ela mesma tentava me impulsionar. Não com brusquidão, claro. Nem como uma leviana brincadeira. Ela tinha esperanças de algo. E eu sentia por estar a decepcionando daquela maneira por não conseguir. Queria deixar as coisas bem claras.
- Será, Jadé? Tá tudo bem?
- Por que não estaria?
- Eu não vou voar!
- E eu não quero que voe sem querer voar.
- Mas você tá esperando que eu voe!
- E qual o problema nisso?
- Eu posso... Posso nunca mais voar!
- Tudo bem.
O jeito displicente dela me enervou.
- Como... tudo...? Como tudo bem?!
- Tudo bem, não precisa voar. Não quero que voe sem querer voar. Mesmo. Vou ficar aqui com você.
- Mas é possível que eu nunca... !
- Ainda assim, estarei aqui. Não me importo de esperar. Mesmo que nunca aconteça.
- Jadé...
Ela planou para mais próximo. Logo se sentou sobre as patas tal como eu estava e, determinada, não arredava dali. Não arredava do que me dizia.
- Tudo tem seu tempo, Líris.
E, claro, eu não disse mais nada.

***

Jadé me contava sobre como eram as barras que lhe prenderam uma vez. Era uma coisa dura, que não dava espaço pra ela sair. Pareciam portas que ela não conseguia ultrapassar. Estavam abertas, todas abertas, mas nenhuma a deixava passar. Só havia uma porta maior, que era por onde o humano entrava para deixar água e comida. Ela já tinha tentado passar por lá, porém, ninguém deixava. Mas houve um dia que a porta ficou aberta e não havia nenhum humano por perto. Foi a chance dela.
Jadé tivera mais outro pesadelo, por isso contava essa história.
- E você, Líris?
- Eu o quê?
- Já pensou sobre sua chance?
É claro que já pensei. Mas...
- E se as barras não ficam só do lado de fora, Jadé? E se algumas barras... ficam do lado de dentro da gente também? O que se faz nesse caso?
Ela demorou pensando numa resposta. E então me disse:
- A gente espera uma oportunidade com a porta maior.
Mais uma vez, com o aperto que me dava ao falar sobre aquilo, eu nada respondi. Mas Jadé continuou assim mesmo:
- A gente senta e observa a paisagem, Líris. Não precisa ser agora e pode ser nunca. Mas estarei aqui, não importa o que aconteça. Eu espero contigo.
Algo, não sei, mudou. Olhei ao redor, como costumava, e também olhei para baixo. Acho que foi a primeira vez, depois de tanto tempo, que eu considerei voltar a voar. Considerei apenas e já me pareceu muito. Olhei de volta para Jadé e sentei. Observei a paisagem.
Não precisa ser agora e pode ser nunca.
Isso me bastava.

Fonte de imagem: @_poematizar (aqui)

Vul, kuelsa, vul!*: “Voe, coisa, voe!”



Kleris Ribeiro é beletrista, produtora e agente cultural. Garota dos bastidores, se joga em marketing digital, comunicação e, recentemente, zines. Fascinada pelos mistérios do universo do livro, é administradora do blog Dear Book e diretora do Clube do Livro Maranhão. Fangirl, diz que mantém a cabeça nas nuvens e os pés no chão. 


Até a próxima!
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Ana Liberato