sexta-feira, 12 de maio de 2017

Resenha: "O céu de Lima" (Juan Gómez Bárcena)

Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman

Por Kleris: Sabe aqueles livros que tem, em seus releases, tudo a ver com você? O céu de Lima se apresentou como uma comédia de erros, metaficção meutombofavorito, com correspondência por cartas, conspiração, bases de realidade e essa capa muito massa para brincar. Às vezes tenho receio de livros assim, com aspectos tão nós mesmos, pois as expectativas e a bagagem literária podem inferir demais na leitura. Mas O céu de Lima foi... diferente. 
Só sabe que ao receber o pacote de cartas tem a sensação de que lá dentro há algo muito íntimo e por outro lado absolutamente alheio. Que é a coisa mais importante que fez na vida e ao mesmo tempo um absurdo, uma estrepolia, uma brincadeira de mau gosto que desandou.
Pense em um autor que você tem uma grande admiração. Agora pense: esse autor lançou um livro que é impossível de encontrar disponível no seu país e você e um amigo (ou amiga) tem interesse na obra. Daí vocês mandam um e-mail falando sobre essa admiração, o quanto esse autor fez/faz diferença na vida de vocês, que tem interesse nesse livro, mas se veem sem a possibilidade de encontrar, e assim, por acaso, pede um exemplar. Talvez o autor não responda ou talvez ele responda, mas não mande o livro pra vocês. O mais natural seria voltar a procurar nas livrarias, esperar que alguma editora publicasse, algo do tipo. Mas e se o pensamento lhes soprasse a ideia de imaginar para que pessoa em especial o autor mandaria e daí se passar por essa pessoa, vocês topariam o desafio de conseguir o livro? 
É verdade que ainda parece brincadeira. Mas de certo modo é a coisa mais séria que fizeram na vida.

Essa é mais ou menos a trama inusitada de Bárcena. Só que são dois amigos poetas (José e Carlos), no Peru, interessados no livro do poeta Juan Ramón Jiménez, em Madri, começo do século XX, trocando intensamente cartas se passando por Georgina Hüber, figura feminina totalmente fictícia. Com o tempo, a brincadeira foi mudando seus objetivos (os poetas passaram a “escrever” um romance sobre a peripécia e já queriam que o autor dedicasse uns versos verdadeiros à Georgina) e a coisa foi ficando séria, a ponto de a ficção de fato bater na porta da realidade. Bárcena abraça essa história – que se inspirou num fato verdadeiro com o autor Juan Ramón Jiménez – e nos faz viajar num espaço entre mundos da realidade e da ficção.

José e Carlos embarcam na empreitada. Eles são meio bobalhões, daquelas peças que não sabem bem ser ou como ser eles mesmos, porém, se arriscam em descobrir. Conforme a história vai ganhando corpo, vemos que aspectos mais profundos de cada um vão despertando – aspectos bons e ruins. Carlos é quem mais se destaca, quem mais parece querer cuidar de Georgina e da história. Questões sobre criação, escrita, percepção, fuga da realidade, soluções de trama, agradar público e outros vão passando diante de nossos olhos assim simplesmente. 
Carlos, por seu lado, não se preocupa com esse poema ainda não escrito. Seus temores na verdade são um só: de que Georgina não valha a pena. De que só tenham conseguido, depois de tantas cartas, de imaginá-la durante tantas noites de insônia, dar à luz uma mulher comum, insignificante, incapaz de despertar o interesse de Juan Ramón. De que ela esteja condenada para sempre a ser um personagem secundário. 
“Mas o que estão dizendo”, interrompe Carlos. “Georgina não tem vocação. Você sabe disso. Nós a fizemos assim. Juntos.”

É muito interessante ver essa relação de uma maneira tão realista e ao mesmo tempo fantasiosa, porque, como leitores, não só vivemos isso o tempo todo, como esperamos que isso aconteça sempre, pelas próprias características do que a literatura nos proporciona: mímese (imitação da realidade), verossimilhança (harmonia ou coerência de elementos em certa realidade) e catarse (processo de emoções que culmina e nos traz algum tipo de libertação, cura ou limpeza emocional).

Ou seja, um livro que traz um mundo semelhante à nossa realidade, que tem certa ordem de sentido, e toda sua jornada nos prende, passando por diversas emoções, a ponto de fechar uma lacuna ou compreensão dentro de nós mesmos; ter um efeito, a depender, em nós. Os autores literalmente se armam destas ferramentas para causar um efeito. Só que, claro, ao entregarem uma história, é sempre uma aposta, pois não há, precisamente, como adivinhar como um livro vai repercutir. O que é outro papo. Mas sim, José e Carlos estão empenhados em escrever essa história, com as cartas de Georgina, usando suas poucas experiências de escrita e leitura. 
É preciso enfeitar a realidade, porque afinal é isso que os poetas fazem, e eles são poetas, ou pelo menos é o que sonham ao longo de muitas noites em claro como esta. E é exatamente o que estão a ponto de fazer agora, o poema mais difícil, um poema sem versos mas capaz de comover o coração de um verdadeiro artista.

A sacada sacada mesmo é a do autor de O céu de Lima, Juan Gómez Bárcena, que tem uma exímia narração pra nos socar nesta (meta?)conspiração. Sagaz, ele não só se arma das melhores ferramentas (contexto, período de passagem, ambientação, psicologia, filosofia, sociologia), como as explora em experimentalismos de narração. Às vezes a gente acha que ele tá saindo da linha (tradicional), daí entendemos que ele quer mostrar várias outras histórias que valem ser conhecidas e que vão contribuir muito. Às vezes, bem, o narrador é apenas traquina e palhaço. Isso só mostra demonstra como o cara é engenhoso e soube segurar muito bem, de começo ao fim, sua história.

Imagino o quanto não deve ter batido cabeça!

O céu de Lima traz inúmeras discussões sobre a arte de escrever e ler, quase um easter egg para nossa percepção. Reflete também várias questões literárias perpetuadas pelos séculos, ainda atemporais. E, embora os capítulos sejam bem curtinhos, a trama é um tanto densa e por isso pede uma leitura mais calma, de sugar pouco a pouco as palavras de Bárcena, que, com certeza, são de arrebatar. 
Talvez seja exagero chamá-los de escritores só porque mandaram algumas cartas. Isso depende da importância que dermos a tal correspondência. E, claro, da seriedade com que considerarmos o próprio ofício de escrever, que aliás não é uma profissão, mas uma espécie de ato de fé. A única coisa de que podemos ter certeza é isto: eles julgam ser escritores. E, tal como uma gravidez psicológica o corpo se alarga para abrigar um filho que não haverá, em torno da sua hipotética condição de literatos também irão se gerando algumas das virtudes e defeitos dos verdadeiros escritores. 
Mas o amor, onde está? Ainda não está, porque ninguém lhe deu palavras. O amor é um discurso, meu amigo, é um folhetim, é um romance, e se não for escrito na cabeça, ou no papel, ou onde quer que seja, não existe, fica pela metade; não passa de uma sensação que imaginou ser um sentimento...

P.S.: Inevitavelmente lembrei da Docinho de Coco (Candy Cane), do filme Perseguição: A Estrada da Morte (Joy Ride, 2001), clássico suspense de fim de noite da Globo. Não achei trailer legendado ou dublado.


 Até a próxima!

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Ana Liberato