Por
Kleris: Tudo começou com um meme
(disponível no fim deste post). Quer dizer, no ano passado, durante a época da
votação do cronograma de leitura do Clube que participo,
uma amiga fez campanha para Dom Casmurro (e o resultado acabou por ser A
hora da estrela). Daí recentemente, numa conversa com leitores,
reavivou-se um meme literário que sugeria mais que um bromance entre Bentinho e Escobar. Encucada com umas impressões
mais, resolvi tirar a prova – reli Dom Casmurro.
Pra
quem ainda tá por fora desse clássico nacional, te deixo a par da trama: Bento
Santiago é um cara solitário que então conta sua história de vida. O cara é tão
fechado em si que um moço do bairro o apelidou de “Dom Casmurro”. Mas nem
sempre ele foi assim. Ele era alegre, espevitado e tinha uma paixão desde menino que passou por muitos
percalços porque a mãe fez uma promessa para que ele fosse padre. É no seminário onde se prepararia para a batina que conheceu
Escobar. Ambos conseguem se safar do destino religioso.
Bento
casa com Capitu, Escobar com Sancha, melhor amiga
de Capitu. Aí que eles viram amigos inseparáveis. Tem seus filhos e se
aproximam ainda mais. Um dia, Bento diz que percebe que Sancha deu em cima
dele. Logo, traços de seu filho começam a ficar muito parecidos com de Escobar.
Os ciúmes que Bento tinha entram em ebulição e paranoia. Sobram por fim só suas
tormentas e dúvidas, estas que lhe afetaram sua vida e devem justificar a
alcunha de “Casmurro”.
Minha
primeira leitura foi há pouco mais de 5 anos, na faculdade, muito guiada pela
pergunta clássica – a suposta traição de Capitu. Desta vez, preferi deixar isso
de lado e só segui com as impressões.
Interessante é que havia notinhas minhas da leitura anterior no meu exemplar e
isso ajudou bastante na hora confrontá-las. Considerei, claro, a época de
publicação de Machado. Não tem como fugir do realismo do autor. Aliás, o texto
revela que tem coisinhas que até Machado deixou passar, porque sua época de
vivência tinha uma compreensão bem limitada (machista e patriarcal).
Dom
Casmurro é um excelente livro – mas com um
século de interpretações questionáveis. A premissa que todos conhecemos (e nos
foi repassada por gerações) é sobre uma dúvida quanto a uma suposta traição, e não sobre
um cara amargurado falando de seu objeto de afeição que não atendeu suas
expectativas (que é o que me parece ser). E, traindo ou não traindo, Capitu é crucificada – dissimulada em
seus “olhos oblíquos e de ressaca”. Não há vez para a mocinha. Mas e Bentinho?
Alguém alguma vez questiona Bentinho?
Bento
é um exímio narrador, isso é inegável. Te enrola tão bem que é fácil cair em
sua paranoia. Isso se você estiver procurando respostas pra pergunta que
acompanha a reputação deste livro. Mas se você para pra “ouvir” Bentinho, pensa
na sua mágoa, e como pessoas se comportam quando assim estão, isso muda o
quadro geral.
Ficando só, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta casa de Engenho Novo, reproduzindo a de Matacavalos... A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida [...]
Fato
é que somos levados a cair no papo de um desvairado (ele vê o que quer ver), o
que nos leva a mais um caso de romantização de abuso. Isso se prova pelo fato de que não haveria história se fosse o inverso.
O
personagem de José Dias também contribui muito para essa percepção torpe de
Bento. Quase um tutor ao garoto/homem, o agregado não era das pessoas mais
recomendadas para cuidar de Bentinho. Ele mesmo tinha umas rixas com o pai de
Capitu, o Pádua. Há quem diga que isso não passava das denúncias sobre os
comportamentos questionáveis da sociedade e toda uma hipocrisia, mas aqui vou
além. O cara era abusivo, do tipo narcisista mesmo. Plantava a discórdia e saía
correndo. Era o perfeito embuste.
— [...] Não digo isto por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus sapatos acalcanhados...
— Perdão – interrompi suspendendo o passo –; nunca ouvi que falasse mal do senhor; pelo contrário, um dia, não há muito tempo, disse ele a um sujeito, em minha presença, que o senhor era “um homem de capacidade e sabia falar como um deputado nas câmaras”.
José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou outra vez o rosto; depois replicou:
— Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me têm feito o favor de juízos altos. E nada disso impede que ele seja o que lhe digo.
Capitu
me parece apenas uma personagem imperfeita, que tem sua personalidade, mas sem
malícias, sem interesses de intrigas. Ela merecia mais. Escobar era outro que
merecia mais também. Tinha ele mais respeito pelo bromance que Bentinho nem um dia podia imaginar. Acho que as consequentes
críticas do livro preferiram rotular isso como mera “ambivalência psicológica”.
E acho que Bento (ou Machado) que não entendeu sobre certas investidas.
Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem.
Como era possível que Capitu se governasse tão facilmente e eu não?
Um amigo supria assim um defunto, e tal amigo que durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se não visse desde longos meses.
— Você janta comigo, Escobar?
— Vim para isto mesmo.
Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos. É ilusão, decerto, se não é efeito das longas que tenho estado a escrever sem parar.
Isso
tudo, no entanto, nada fere o mérito de Machado de Assis. Ele foi brilhante. O
modo como conduziu e fez muitos caírem na história de Bento, como reproduziu nas
linhas a revolta, a amargura, a obsessão de um sujeito comum, assim como seu
apego às memórias e às idealizações... Acho que é porque é tão natural confiarmos
e torcermos pelo narrador.
O
fato de Machado jogar a bola pra gente, de fazer a interpretação do caso, também
é impressionante. Mas às vezes não deixo de pensar que pintam o autor mais do
que ele foi... Nesse caso, tenho que ler outros de seus trabalhos para
averiguar melhor isso. Quem sabe?
É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim, preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.
Há
ainda muitas referências universais da época. Indico que você tenha um exemplar
com notas de rodapé e textos extras para te auxiliar um pouco na compreensão da
época – cotidiano, hábitos, expressões. A edição da L&PM, de 2008, tem todo
um aparato.
Dom
Casmurro é assim um livro sobre um cara que não
sabe perder, culpa tudo e todos ao redor e tampouco é humilde de assumir o que
fizera. É a típica pessoa que coloca no outro uma responsabilidade absurda por
tudo o que faz. Queria uma felicidade que só competia a ele ser feliz, queria
um casamento que seguisse seus preceitos. É sobre alguém que não aprendeu a dar
espaço, nem a respeitar a mulher, e preferiu seguir uma vida amargurada. Suas
lembranças, claro, são bem seletivas em demonstrar o “pior” do outro, mas
esquece (sempre) de olhar para si. Reconsiderem isso numa próxima leitura ;)
Fiquei
puto porque não consegui controlar o seu pensamento
Mas
amei você, amei você, mas amei você
Mas
amei você, amei você, mas amei você
Pode
agradecer
Até a próxima!
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