Por Kleris:
Se prepare para a caçada mais épica desse Brasil!
Porque se você mora na Chapada do Pytuna, precisa tomar a iniciativa e criar a aventura.
Em Enfim,
Capivaras, uma turma de
garotos e garotas se unem para pegar o mentiroso da escola no pulo. No caso,
Dênis – também conhecido como Binho. Não importa a situação ou contexto, Binho
tem essa mania de grandeza e de mentiras sobre coisas que ele tem, conhece ou
já viu. Até então era difícil comprovar informações soltas ou pouco palpáveis (como
ter conhecido o Faustão), mas quando ele diz que tem uma capivara de estimação,
a galera se reúne pra ir lá visitar o animal. Assim, só aparecer na porta da
casa dele e ver até aonde essa lombra
iria.
Porque, como nossas próprias mentiras, a gente quer que seja verdade.
Para
a surpresa de zero pessoas, Dênis conta que Capi, a capivara, fugiu. Surge a
ideia então de ir atrás dela, afinal, não deve ter ido muito longe. Até porque
a cidade, Chapada do Pytuna, no interior de Minas, também não era muito grande.
E assim, com o carro de Léo, munidos de salgadinhos, bolos e bebidas, eles
seguem à procura de Capi. Ou da verdade. Ou da justiça pelas merdas que Binho
dizia por aí, interferindo na vida de tantas outras pessoas sem qualquer
responsabilidade.
Olhamos pra Vanessa e erguemos o mapa de leve. Ela faz que não com a cabeça (acelerado, vídeo acelerado), enquanto Nick dobra o papel e enfia no bolso. Vamos entrar no mato atrás de uma capivara potencialmente roubada, vamos no sentido contrário da civilização, que na verdade não é civilização, às dez da noite. Nenhuma ideia parece boa e essa é a pior de todas. Abro um sorriso.
Esse
é um livro que você não vai querer largar até encontrar todas as respostas. É
também um livro bem vapt-vupt, de uma sentada só, sincerão. Embora curto e
rápido, é hiper rico de histórias, detalhes, identidades. E uma das coisas mais
legais – além de sua premissa – é como a história é contada.
Acompanhamos
a empreitada em um espaço de 12 horas e em tempo real com vários pontos de
vista: de Vanessa, a garota da cidade grande que se mudou recentemente para o
interior; Nick, a garota de um espírito aventuresco que luta para encontrar um
encaixe no mundo; Léo, o garoto de pai fazendeiro (e rico), que deveria andar
na linha; e Zé Luís, o filho da empregada da casa de Léo, um companheiro que
vive à sombra do amigo.
A gente está assim. A gente é assim. Neste momento.
Cada
um tem motivações, vivências e segredos que marcam a experiência confusa da
adolescência. Isso facilmente nos lembra do clássico Clube dos Cinco que
repercute até hoje em diversas séries e filmes, mas o plus aqui é que a gente
se conecta à trama de uma maneira nada americanizada. É aquela cidade pacata,
pequena, buraco de meteoro, quente
pra dedéu, sem vento algum e bem comum dessa terra e de muitos brasileiros. Ao
retratar o ambiente interiorano, nossa linguagem e nossas peculiaridades,
sentimos o quanto a história é crível. Aliás, é ótimo ler algo assim, tão
nosso, tão a gente, tão verdadeiro.
— Não sei se é seguro ficar parado aqui na estrada — diz Nick, enquanto olhamos para Dênis.
— É — diz Zé Luís. — Alguém pode querer nosso minduim.
— Sei lá — ela diz —, é que escureceu.
— Outro Gusmão que não bate bem é aquele primo dele — digo —, que tem a esposa alcoólatra, que bebia até perfume, lembra?
— É — Nick começa a sentar no chão —, mas isso foi depois que o pai dela teve um AVC e tal, não dá pra dizer que...
— Posso terminar minha história? — interrompe Dênis.
— Ah — eu rio. — É mesmo.
O
que move a narrativa (e faz suas páginas voarem) são os diálogos; as interações
são tão naturais que podemos nos ver ali, reconhecer outras pessoas e voltar
alguns anos de nossa própria história de crescimento. Eu, pelo menos, revivi um
pouco dos anos 2000, as picuinhas de turma, as modinhas, os privilégios
sobressaltados, lembrar das companhias, da conveniência escolar, e ver um pouco
da porra da vida de todo mundo. Todos tivemos um amigo x, y, z da trama, e
todos guardamos histórias escabrosas da
época da escola. É a temporada mais traumática da vida, mas é um tempo que a
gente não pira sozinho.
— Acho que tá na hora de ir pra casa.
— Espera — diz Nessa. — A gente não vai resgatar o tamanduá?
— Resgatar o quê? — digo. — A gente sai pra catar uma capivara e quando vê tá cagando com a vida de outro bicho da fauna brasileira. Deixa pra lá.
— “Outro bicho da fauna brasileira...” — Léo diz, rindo.
Nesse
contexto, Luísa lança as cagadas dos personagens ao leitor para que tire suas
conclusões. Identidade, percepção de realidade e refúgio são temas fortes e que
incitam conversas importantes, assim como quebras de tabus. Para tal, ela se
utiliza de muitas conversas do grupo e conversas internas para mostrar as
situações e acho que essa foi uma das melhores escolhas de como nos presentear a
história. Sua intervenção entre os capítulos, com listas regressivas paralelas
à trama, também se revela um grande acerto para a narrativa.
11 motivos pelos quais Zé Luís está junto nessa bagunça11. Porque, por algum motivo, ele sempre está junto nessa bagunça. Por ser o Filho da Empregada, cargo oficial, sempre tem que ajudar. Ele ajuda a mãe a terminar mais rápido, a secar a louça, a dobrar a roupa. Ajudou com a mudança entre os apartamentos caros da família, ouvindo sobre como cada custava dois milhões. Ele ajuda Léo com os deveres de casa desde suas primeiras dificuldades com frações.
E
assim ela vai do humor ao drama, do simples ao complexo e do banal ao pesado em
poucas linhas – palavras até. Nelas, trabalha-se bastante esse senso de
liberdade, de ser e apenas ser, de sair da linha, de fazer merdas, de se
procurar, de encontrar apoio no outro, tudo junto e misturado. A sensação que
fica é que precisamos de mais livros verdadeiros e sincerões como esse.
Por mais que seja extrovertida — voltada para fora —, se sente mais introvertida — voltada para dentro. Ela se sente uma silêncio-vertida. E precisa esconder isso.
— A gente vai trocar um lugar real, que a gente tá vendo por uma fazenda imaginária onde tem capivaras? — diz Dênis. — Vocês tão bêbados?
Enfim,
Capivaras é assim uma leitura certeira para aquela
viagem de busão ou trem rumo ao interior. É criar a aventura quando a aventura
não vem até você. E é excelente para curtir tardes chuvosas, aproveitar
intervalinhos de aula, curar ressacas literárias e mandar a censura ir à merda
por querer abafar uma preciosidade dessas (reveja o caso aqui).
Vale lembrar também de ler a entrevista com a autora no final, uma novidade da
editora Seguinte para os seus últimos lançamentos <3
E,
claro, recomendadíssimo!
Semelhante
à obra anterior de Luísa (De espaços abandonados; reveja
resenha aqui),
perguntas ecoam. A diferença é que um livro nos deixa aos berros alucinada e o
outro rindo loucamente. Deixo com você pra descobrir essa.
— Eu nunca moraria num lugar sem McDonald’s — digo. — Não por não poder ir ao McDonald’s, mas pelo que isso significa, sabe? Se não chegou McDonald’s, o que mais não chegou?